
Esta semana, o grupo de trabalho tripartite formado pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) para discutir a regulamentação do trabalho por aplicativo volta a se reunir. Os encontros começaram em junho, concentrado nas atividades de entregadores e transporte e motorista, e se prevê que em 150 dias – prorrogáveis pelo mesmo período – se chegue a uma proposta. Na conversa que teve par a revista Conjuntura Econômica de julho, o secretário executivo do MTE, Francisco Macena, afirmou que o objetivo inicial do grupo é pactuar os conceitos que regerão as regras. Também defendeu que um caminho focado apenas no campo previdenciário não tem sido suficiente para atender à demanda desses trabalhadores nos países que assim optaram. Antecipamos aqui trechos da entrevista:
Como têm evoluído as negociações no grupo de trabalho?
Nossa expectativa é de que possamos pactuar alguns acordos e processos, sem muita pressa neste início. Como é um processo novo, queremos fazer isso com a maior calma e seriedade possível, estabelecendo uma relação de confiança mútua. Há uma agenda prioritária para dar conta nesse processo, com dois temas. O primeiro é a regulamentação econômica da atividade do setor. Compreendemos que não se trata de uma atividade única, envolve muitos serviços, mas é preciso ter um campo na qual estes possam se enquadrar. Qual é esse negócio? É intermediação? É empresa de TI? É transporte de passageiros? É entrega de mercadorias? São empresas de logística? Hoje cada empresa se autodeclara de uma forma na Classificação Nacional de Atividades Econômicas (CNAE). Além da questão tributária, isso afeta a estrutura da ocupação dos serviços a serem prestados, qual o tipo de vínculo dos serviços que são estabelecidos a partir desse tipo de atividade. Hoje, os setores que não estão trabalhando por aplicativo também querem uma definição desse processo para saberem como vão se posicionar, seja na área de comércio ou serviços, para não haver uma concorrência desleal. Como todo negócio que já existiu no Brasil e no mundo, todo negócio tem que ter algum tipo de regra.
A segunda pauta são as condições de trabalho. Independentemente de qual seja o vínculo, essas condições também contam com conceitos internacionais sobre o que é um trabalho decente. Por exemplo, as jornadas não podem ser excessivas. Para quem trabalha como entregador, as questões de segurança têm que ser respeitadas – equipamento, material de proteção –, assim como não permitir nenhum tipo de assédio nas relações, mesmo que esse se dê via algoritmo, que é quem acaba determinando por exemplo o número de viagens de um motorista, se é bloqueado, suspenso. Há uma relação clara de controle, de certa subordinação, e isso tem que ter um regramento também, para se garantir condições de trabalho. Não é possível um entregador trabalhar 18 horas por dia para atender a uma expectativa de renda.
O foco inicial é sobre condições de saúde e remuneração mínima?
Iniciamos por onde há condições de avançar a partir de uma escuta dos trabalhadores e de uma escuta das empresas, mas não são as únicas. Há uma agenda grande.
A questão da remuneração é ansiada pelos trabalhadores. Na última reunião, conseguimos avançar em alguns conceitos. O primeiro é de que é preciso garantir uma renda mínima liquida. Foi um termo inclusive que as empresas utilizaram, que leva em conta que há uma série de custos da atividade que não são propriamente remuneração da força de trabalho, como manutenção de carros e motos, combustível. Trata-se de um conceito universal que se pode mensurar, pois isso já é feito para táxis, caminhoneiros, transporte de ônibus, locação de veículos, por exemplo. Nesse ponto, ambos os lados reconhecem que têm que discutir.
Na questão da saúde do trabalhador, também já há consenso. E tem a questão da proteção social, dos benefícios que hoje quem contribui com o INSS tem: direito a aposentadoria, ao seguro-desemprego, cobertura quando fica doente. Mas é preciso discutir com as empresas como contribuirão para o sistema, pois não é justo que os demais trabalhadores e as demais empresas de todas as outras atividades econômicas financiem sozinhos essa categoria. Vale lembrar que algumas dessas atividades são de altíssimo risco, como a dos motoristas em moto. Nesse caso, a pressão sobre o serviço público é ainda maior. Basta ver a quantidade de óbitos e pacientes de ortopedia nos hospitais frutos de acidentes. Assim é preciso definir quanto cada um vai contribuir, pois é assim que nosso regime de previdência pública é formado.
Em webinar recente (leia mais aqui), especialistas levantaram a hipótese de que esses trabalhadores hoje não buscam uma formalização – como MEI, por exemplo – porque falta uma garantia de curto prazo, como é o caso do seguro-desemprego para o celetista. Concorda?
MEI é uma situação que, a meu ver, não se encaixa. Não estamos falando de alguém que está empreendendo, que inclusive tem direito a contratar. Mas há outras figuras jurídicas. Independentemente de discutir se esse trabalhador será autônomo, celetista, é importante definir que ele tem uma relação de trabalho em que a demanda do sistema de proteção social não pode ser arcada só pelo Estado, porque significa transferir para o conjunto da população que contribui o custo de quem não contribuiu – estou falando do ponto de vista de empresas e trabalhadores. Discutiremos primeiro a sustentabilidade sistema, que garanta que a previdência se sustente e a pessoa depois de 20 anos de contribuição tenha direito a sua aposentadoria, bem como direito a um seguro-desemprego. Para isso estamos buscando essa base de regulamentação.
Como imagina que se poderá avançar a questão de remuneração mínima, posto que se trata de uma atividade em que os trabalhadores contam com flexibilidade de horário e muitas vezes prestam serviço para mais de uma empresa?
Temos alguns conceitos. Em Nova York, por exemplo, definiu-se uma renda mínima para empregadores de aplicativos, calculada por hora-trabalho. Qual a base? O conceito universal de trabalho decente é de 40 horas semanais. Mas não podemos seguir o cálculo apresentado pela associação das empresas (Amobitec), de que 44 horas semanais para um motorista, por exemplo, são contadas só quando o passageiro está dentro do carro, que isso é impossível de cumprir. Tem que ter um cálculo diferente, que leve em conta quando o motorista está plugado esperando corridas. E já existem tecnologia para dividir essa conta com as várias empresas para as quais ele presta serviço. E há o modelo de trabalho intermitente, por exemplo, que permite o serviço para mais de uma empresa. Nada aqui é novo. A novidade é a mediação por aplicativo.
Veja, o mais importante agora é pactuar os conceitos, para depois discutirmos valores. Pois para os valores, temos tecnologia que nos ajuda a avançar num acordo. Mas quero destacar que o debate da questão da proteção social, que foi onde todo mundo caminhou, sempre é colocada em primeiro plano. É o que as empresas querem, porque o passivo jurídico para elas é muito grande. Mas não é s[o disso que os trabalhadores precisam. Os países que só regulamentaram isso estão revisando suas regras. Inclusive, estão de olho em como nosso debate está se desenvolvendo – sei porque tenho sido convidado para conversas bilaterais.
Temos que discutir também a transparência dos dados. Essa é uma agenda que não pode ser colocada em segundo plano nesse processo, porque na verdade é ela que determina o cálculo do restante, qual a relação desses trabalhadores com as plataformas. Por exemplo, é comum a promoção de games, promover jogos para estimular a produtividade. Uma hipótese: quem faz 100 viagens ganha bônus. Mas se chega a 99, e não 100, o motorista nunca sabe se falta passageiro ou o algoritmo o deixou no final da fila na distribuição de passageiros. Para o trabalhador que atua dentro da tarifa variável por que acontece de não ter a mesma distribuição percentual? É preciso alguma transparência.
Quais exemplos de revisão de regras?
Na Europa estão revisando; os estados americanos – nos EUA cada um tem uma legislação diferente – também, apesar de que lá a lei previdenciária é completamente diferente da nossa. Mas onde tem situação parecida, estão revendo. Na América Latina, a Colômbia está fazendo uma proposta de estatuo que avança além da Previdência, porque não dá conta. E, como disse, mesmo para garantir a questão previdenciária é preciso uma contribuição justa que garanta sustentabilidade ao sistema, apurando o nível do poder contributivo de cada um.
Com base na experiência das reuniões que já tiveram, quais serão os temas mais sensíveis para se chegar a esse acordo de uma regulamentação?
Acho que, quando começarmos a discutir qual o nível de remuneração, certamente haverá conflito de interesses. Quando discutirmos qual percentual contributivo para o sistema de proteção, também. A agenda toda é muito sensível. Por isso estamos pactuando primeiro quais são os conceitos. Concorda que tem que ter proteção? Sim. Que tem que ter algum nível de transparência de dados? Sim. Concorda que tem que ter remuneração mínima? Que não pode trabalhar 18 horas por dia? E daí criando condições de avançar.
O que queremos é dar sustentabilidade a esse modelo de negócios, para os trabalhadores, para as empresas, para o governo. Até para o sistema jurídico, porque a quantidade de processos no tribunal do trabalho é grande. Isso é custo para as empresas, para o sistema, o governo, o Judiciário.
E, como mencionei, precisamos começar definindo a CNAE dessa atividade. Se não avançamos nisso, não daremos segurança jurídica para todos. Setores da economia que hoje estão regulamentados poderão querer migrar para esses setores e, entre outros, aumentar a informalidade do mercado de trabalho. Dou um exemplo, de uma atividade de que não estamos tratando agora, mas que também vamos tratar: o sistema de transporte intermunicipal, interestadual de passageiros. Hoje temos um sistema formal, e sérvios mediados por aplicativos. Quando tem um sistema formal que define uma oferta de passagens, como de avião ou ônibus, ele é formatado com uma oferta garantida, e não a partir da demanda, o que gera outro custo. Ônibus partem das rodoviárias no horário ofertado estando cheios ou não. E nem falo o custo de garantir espaço na plataforma da rodoviária, de garagem, mas, por exemplo, de garantir a viabilidade de oferta para outros destinos menos buscados. E isso vale para qualquer setor da economia.