E se a inflação fosse calculada a partir de uma cesta de consumo móvel, que se adaptasse automaticamente às alterações de preferência do consumidor ao longo do tempo? Esta pergunta, feita por economistas há décadas, é ainda mais relevante para países em que a atualização da cesta de consumo usada como referência nos índices de inflação ocorre com baixa frequência. No Brasil, essa atualização se dá por meio da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) do IBGE, que tem ocorrido com intermitência média de 6 anos, considerando as últimas 3 décadas.
Neste estudo, analisamos os resultados de um índice experimental, criado para calcular a inflação brasileira de forma análoga à dos índices da família conhecida por PCE, ou Personal Consumption Expenditures (índices das despesas pessoais de consumo). Os índices deste tipo são muito usados em análises macroeconômicas, uma popularidade que pode ser comprovada pela adoção, em 2012, do PCE calculado pelo Bureau of Economic Analysis (BEA) como referência no regime de metas de inflação do Federal Reserve Board (Fed).
Duas diferenças entre o PCE e um Índice de Preços ao Consumidor (IPC) tradicional merecem ser destacadas. Primeiro, a estrutura de pesos de bens e serviços de um PCE é extraída majoritariamente do Sistema de Contas Nacionais (SCN) e considera o gasto total por grupo de produtos no consumo das famílias, enquanto os índices de preços ao consumidor tradicionais focam em intervalos de renda específicos por buscarem atender ao interesse de políticas públicas. No IPCA do IBGE, por exemplo, a cesta de consumo das famílias brasileiras, determinada pela Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), considera famílias com renda mensal até 40 salários mínimos (s.m.). Já o IPC-BR do FGV IBRE inclui famílias com renda até 33 s.m. mensais.
Pesquisas como a POF possuem intermitência muito longa, levando a uma gradual desatualização da cesta de consumo das famílias usada como referência nos índices de preços. O interesse em observar a inflação a partir de atualizações mais tempestivas de pesos decorre, principalmente, da possibilidade de capturar o efeito-substituição da demanda por bens e serviços relacionada aos níveis de preços de cada item pesquisado ao longo dos ciclos econômicos, especialmente em períodos em que o ambiente econômico muda rapidamente.
Pesos que deixam de refletir com o tempo o padrão de consumo das famílias tendem a fazer com que os índices de preços superestimem a inflação, aumentando o esforço da política monetária e impactando o nível de atividade econômica. Por este motivo, os países vêm buscando formas de atualizar com maior frequência as estruturas de pesos de seus índices de preços.
Uma segunda diferença entre um PCE e um IPC tradicional deriva do fato de que a atualização de um PCE depende de estatísticas que são periodicamente revisadas, levando a que os números deste índice também sejam revisados. As revisões levam ao aperfeiçoamento das medidas, mas impedem que esta classe de índices seja usada como indexadora de contratos.
O índice experimental criado neste artigo resultou de um esforço conjunto da equipe do FGV IBRE que produz os índices de preços e a equipe responsável pelas estatísticas derivadas do SCN. Foi batizado como Índice de Preços dos Gastos Familiares (IPGF). O IPGF tem seus pesos originais e atualizações mensais determinados pelo Sistema de Contas Trimestrais do IBGE (SCT) convertidos à frequência mensal com base no Monitor do PIB, do FGV IBRE. Por depender dos resultados do SCT, a atualização do IPGF só pode ser realizada com defasagem de dois meses.
Essa estrutura de pesos extraída do SCN contém 52 itens, bem menos que os 377 subitens do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Ampliado (IPCA), do IBGE. Para que os itens do IPGF tenham sua variação determinada por componentes do IPCA, os autores realizaram um cuidadoso trabalho de adaptação de uma estrutura à outra.
Em grandes linhas, a única diferença relevante entre o IPGF do FGV IBRE e o PCE do BEA é que, além das despesas das famílias, este último considera também a evolução dos preços em dois itens que são consumidos pelas famílias sem que estas incorram em gastos diretos, por serem itens financiados pelo Estado: a Saúde e a Educação Públicas.
Primeiros resultados do IPGF
A série mensal do IPGF foi construída para o período entre janeiro de 2000 e dezembro de 2022. O gráfico 1 mostra a série histórica do índice comparada à do IPCA. Entre janeiro de 2000 e dezembro de 2022, o IPGF acumulou uma inflação de 283,5%, bem inferior à variação acumulada de 307,6% do IPCA. Em médias anuais, o IPGF ficou 0,3 ponto percentual abaixo do IPCA durante o período.
A maior parte da diferença entre os dois índices se deve ao efeito-substituição, melhor capturado pelo IPGF - com a atualização mensal de pesos – do que pelo IPCA.
O efeito “frequência de ponderação” pode ser ilustrado por números. A Tabela 1 do release mostra a diferença entre a inflação acumulada pelo IPGF nos primeiros e nos últimos 12 meses de vigência de cada POF na estrutura de pesos do IPCA. Nos primeiros 12 meses, ou seja, logo após a atualização dos pesos do IPCA, o IPGF chega a superá-lo em duas ocasiões. Já nos últimos 12 meses de vigência da respectiva POF, o IPGF fica sistematicamente abaixo do IPCA.
Outra parte da diferença entre os dois índices pode ser explicada pelo uso de diferentes formulações no cálculo de cada um. O IPCA é calculado por meio de um índice de tipo Laspeyres modificado , enquanto o IPGF é calculado pela fórmula de Törnqvist, um índice superlativo . A família de índices captura com maior precisão o efeito-substituição em uma cesta de consumo, não estando sujeita aos vieses dos índices clássicos (Diewert, 1978).
Evolução recente dos índices
A última revisão de pesos do IPCA ocorreu em janeiro de 2020. De lá para cá, o IPGF vem acumulando uma inflação superior à do índice oficial do IBGE, fato que pode ser explicado por dois fatores: em primeiro lugar, ainda estamos muito próximos do período de atualização dos pesos. Em segundo lugar, o impacto da pandemia de covid-19 nas preferências do consumidor não foi trivial. Medidas de restrição à circulação de pessoas impediram que as famílias exercessem plenamente suas preferências, alterando sobremaneira a utilidade percebida por bens ou serviços específicos a cada momento.
No início da pandemia, diversos produtos alimentares básicos tenderam a se comportar como bens de Giffen (arroz e feijão, por exemplo). Segundo o IPCA, em junho de 2020, enquanto a alimentação no domicílio comprometia 14% da renda das famílias, no IPGF a despesa com alimentos passou a comprometer mais de 18%, refletindo a escalada dos preços dos alimentos e seu efeito sobre a cesta de consumo das famílias. Hoje, ambos indicadores registram peso similar para as despesas com alimentação. Com o abrandamento do choque e normalização da atividade econômica o peso retornou ao patamar habitual.
O aumento do peso dos alimentos em 2020 foi impulsionado pelo receio de desabastecimento no início da pandemia, pela concessão de transferências governamentais extraordinárias e pelos aumentos de preços de importantes commodities agrícolas, cujas cotações são determinadas no mercado internacional. Destino inverso foi registrado para os serviços, que tiveram seus pesos reduzidos durante a pandemia.
Após a normalização do cenário pandêmico, as preferências se ajustaram e o IPGF voltou a registrar valores inferiores ao IPCA já em 2022. No acumulado de 12 meses até dezembro de 2022, o IPGF subia 4,9%, contra 5,8% do IPCA.
Considerações finais
No mundo ideal, os índices de preços seriam calculados com estruturas de pesos sendo atualizadas continuamente e a partir de formulações de índices superlativos, mais eficientes e não-viesados. Como dito acima, pesos que não refletem o padrão de consumo das famílias tendem a levar, na maioria das vezes, à superestimação da inflação, aumentando o esforço da política monetária e impondo um custo à sociedade.
A evolução dos pesos dos itens do IPGF durante a pandemia mostra que os padrões de consumo podem mudar rapidamente, adaptando-se a restrições atípicas como as impostas pela pandemia, ou mais lentamente, como reflexo dos ciclos econômicos, das transformações tecnológicas e das preferências dos consumidores.
Embora não se deva considerar o IPGF como uma proxy do IPCA, o novo índice nos parece suficientemente relevante para justificar seu acompanhamento daqui para a frente. Ao captar com relativa eficiência as mudanças nos hábitos de consumo da população, o IPGF qualifica-se como uma referência, para fins analíticos, dos efeitos de uma atualização mais frequente da estrutura de consumo dos índices de preços hoje disponíveis no país.