Entrevista a Felipe Salto | Conjuntura Econômica

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Felipe Salto, diretor-executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado Federal

Em artigo na Conjuntura Econômica em 2016, em coautoria com José Roberto Afonso, há sua avaliação de que o teto de gastos tinha um problema original de desenho: não estimula um ajuste de cara, e quando a situação aperta, fica impossível cumpri-lo. Com a agravação do quadro fiscal efeito da pandemia, considera que uma reforma seria inevitável? 
Uma regra fiscal, sozinha, não faz verão. O teto foi importante para ancorar expectativas, lá no fim de 2016, no encerramento de um biênio muito ruim para a economia, com dois anos seguidos de recessão. Ao aprová-lo, assim como o Senado fez com a proposta de criação da IFI, no mesmo período, o governo da época e o Congresso deram uma sinalização clara de que o compromisso com o ajuste fiscal seria efetivo. Ocorre que a regra tem problemas de desenho, que agora estão cobrando o seu preço. 

Enquanto o artigo 107 do ADCT, no parágrafo 4º, diz que a proposta de lei orçamentária não poderá conter despesas que excedam os limites do teto, o artigo 109 enuncia os gatilhos que seriam acionados no caso de rompimento. Esse texto, em princípio contraditório, precisa ter uma interpretação conjunta e sistemática. E uma saída possível é que a leitura conjunta da Emenda 95 permitiria, sim, garantir o rompimento do teto no PLOA. Caso contrário, os gatilhos teriam sido postos no 109 apenas como adorno? Não faz sentido, a meu ver. 

É óbvio que essa redação ruim, agora, deixa nas mãos do atual governo e do Congresso essa tarefa inglória de dar um sentido para a regra do teto. Mas é preciso ter cuidado para encontrar, tempestivamente, o caminho do meio. Pelas contas da IFI, o teto está na iminência de ser descumprido. O risco de ser rompido já em 2021 é alto, como temos demonstrado nos Relatórios de Acompanhamento Fiscal (RAF), publicados mensalmente.  

Se a tramitação da PEC da Emergência Fiscal fosse levada adianta, esta daria conta de mitigar as falhas do teto?
A PEC da Emergência Fiscal tem a vantagem de retirar da regra do teto o peso do acionamento dos gatilhos. Só que ela traz para o seio da regra de ouro, outra regra constitucional, essa tarefa. A regra de ouro diz que não se pode fazer dívida para financiar gastos correntes. A forma como foi construída, no Brasil, tornou essa regra anódina, sem efeito, muito ruim. Mas ela está na Constituição. Uma saída precisou ser encontrada quando, há cerca de dois anos, seu rompimento passou a ser iminente.  

Encontrou-se, então, a solução para rompê-la, construída por diversas instituições, a várias mãos, que consistiu em enviar o PLOA ao Congresso com uma fatia de despesas sujeitas à aprovação de um Projeto de Lei enviado pelo Executivo ao Congresso (PLN). Dito de outra maneira, o rompimento da regra de ouro já está equacionado e abençoado pelos órgãos de controle. Assim, a ideia da PEC da Emergência seria trazer o acionamento das medidas de ajuste previstas nos gatilhos do teto para a regra de ouro. O problema disso é que se fortaleceria uma regra datada e se esvaziaria o teto como foi originalmente pensado. Pior, o teto passaria a ser uma regra solta na Constituição, cujo descumprimento não ensejaria sanções. 

É preciso pensar em alternativas. Entendo, pessoalmente, que o melhor a fazer é dar uma interpretação sistemática aos dispositivos da Emenda 95, para permitir o acionamento dos gatilhos via rompimento do teto no PLOA se necessário. Seria uma solução menos dramática, embora não definitiva. Mas há outras possibilidades. Esse debate está equivocadamente muito polarizado. É preciso ler o que está na CF e fazer contas. Importante que qualquer saída seja construída com participação do Congresso, do TCU e do STF.

Até quando poderíamos manter os gatilhos acionados sem causar desequilíbrios?
Pela regra, é possível alterar o mecanismo de correção do teto a partir de 2027. Como não se sabe se e como será feita a modificação, no nosso cenário, para fins de projeção, ao romper-se o teto, em 2021, os gatilhos ficariam acionados, pelo menos, de 2022 a 2030. Este é outro problema da regra do teto. Ela prevê mecanismos de retorno à regra original que são, potencialmente, insuficientes. O que é preciso, para valer, é fazer uma discussão a respeito do arcabouço fiscal vigente e harmonizar as regras que estão na mesa. 

Eu costumo dizer que o Brasil é pródigo em criar regras fiscais, mas nem tanto em cumpri-las. O teto exerceu o seu papel, mas estamos diante de uma encruzilhada. A melhor solução, no curto prazo, é evitar esticar a corda. A regra está escrita na Constituição, e não em um papel de pão. É preciso que se dê a interpretação adequada aos seus dispositivos e que se consiga obter algum fôlego, assim, para repensar a indexação apenas pela inflação.  

Não há solução pronta. E não há fórmula mágica para se produzir um ajuste fiscal adequado. Regras fiscais precisam estar vinculadas a estratégias de política fiscal coesas e a um plano de aprovação de reformas junto ao Congresso Nacional. Teto sem alicerce e paredes não funciona. É preciso ter convicção de que há necessidade de um programa amplo de ajuste fiscal para que se retome o crescimento econômico lá na frente.

Além de um momento de economia política difícil, com pressão para aumento de gastos, como a IFI avalia o horizonte da receita para os próximos anos, e como isso compromete o ajuste fiscal?
A recuperação da economia será lenta e nada foi feito para que o PIB potencial crescesse. Assim, está contratado um crescimento em torno de 2,4%, para a próxima década, que só aumentaria na presença de medidas estruturais nas áreas de educação e infraestrutura. Com o fim do bônus demográfico e baixa produtividade, é difícil enxergar um quadro melhor. Nesse contexto, as receitas vão caminhar numa dinâmica parecida com a do PIB e darão sua colaboração para restabelecer o equilíbrio fiscal, desde que se avance no ajuste fiscal pelo lado da despesa.
 
Iniciativas do governo como foi a proposta de Fundeb, contemplando o financiamento de compromissos assistenciais, é um sinal arriscado? 
A tentativa de colocar no guarda-chuva do Fundeb as despesas de um novo programa de transferência de renda é sintoma de que podemos estar namorando, novamente, com o expediente da contabilidade criativa, que tanto mal fez ao país, no período recente. Não custa lembrar que as metas de resultado primário foram burladas por descontos de diversos tipos de gastos, até o limite em que aquela regra fiscal perdeu força e credibilidade. Esses episódios estão relatados em livro que publiquei em parceria com Mansueto Almeida, em 2016, pela Editora Record: Finanças Públicas: da contabilidade criativa ao resgate da credibilidade.

O governo precisa encontrar uma saída que não seja disruptiva. O teto tem suas vantagens e a viabilização do acionamento dos gatilhos poderia ser uma boa saída. O que se deve evitar, sem dúvida, é entrar de cabeça no expediente da criatividade. Esse episódio do Fundeb foi muito preocupante. Também destaco as declarações do governo no sentido de querer retirar do teto determinado montante de investimentos. 

As pressões por expansão fiscal são muitas e se originam em diversas frentes. Sem governo forte, o risco é burlar as regras para promover essa expansão sem lastro, sem indicar fonte de arrecadação, sem cortar outras despesas. É brincar com fogo, porque a dívida estará 20,3 pontos do PIB mais alta do que em 2019, devendo encerrar 2020 em 96,1% do PIB. Pelo nosso cenário, na IFI, essa dívida ainda cresceria até 2030. Nesse contexto, não tem espaço para malabarismos e práticas questionáveis. Credibilidade é algo que demora pra se construir, mas é, muitas vezes, líquida, e tudo que é líquido se desmancha facilmente no ar.
 
Em artigo publicado na mídia em julho, o ex-diretor do BC Affonso Celso Pastore defendeu que o desafio do Brasil não é aumentar o total dos gastos, mas alterar sua distribuição favorecendo os mais pobres. Se a economia política não fosse um problema, isso seria suficiente para manter o país dentro do teto de gastos sem colapsar a máquina pública que presta assistência aos mais pobres?
O Professor Pastore, como sempre, faz o alerta correto. Expandir gastos não é remédio para os males da economia nacional. Seria importantíssimo que se elaborasse um plano fiscal de médio prazo, conhecido na literatura de orçamento como medium-term expenditure framework. Esse plano teria por base a revisão periódica de despesas governamentais, fundamentada em avaliação técnica de todos os programas e políticas públicas. 

Por exemplo, por que não cortar metade dos gastos tributários e usar o espaço fiscal para transferir renda aos mais pobres neste momento difícil? Não seria mais inteligente do que manter benefícios absurdos, a exemplo dos descontos de gastos com saúde, no Imposto de Renda, que beneficia ricos? Segundo o Demonstrativo de Gastos Tributários publicado em março, pela Receita Federal, as deduções legais no IR representam quase R$ 20 bilhões. São dois terços do orçamento anual do Bolsa Família.

Antes de se pensar em aumentar a carga tributária - o que, aliás, já está embutido na proposta do CBS enviada pelo governo ao Congresso, com a alíquota de 12% para este tributo - é preciso olhar o lado da despesa. Sem isso, vamos seguir aumentando carga tributária e gastos públicos, mas a vida do brasileiro, lá ponta, não vai melhorar. Vamos apenas carregar um Estado ainda mais pesado sem avaliar a sua eficácia e eficiência. É preciso tirar de quem não precisa para poder dar a quem precisa. Teremos condições políticas de caminhar nessa direção?

Considera que uma rodada de aumento de impostos combinada com o cenário de liquidez internacional e juros baixos poderiam fazer com que empurrássemos nosso problema de estabilizar as contas com a barriga?
Juros baixos não são para sempre. O maior equívoco que muitos estão cometendo, hoje, é achar que a dívida/PIB está controlada, mesmo quando se aproxima de 100%, porque os juros estão baixos. Ora, o balanço de pagamentos não é imutável. O hiato do produto também não vai ficar aberto para sempre. Isto é, a política monetária poderá mudar de sinal, nos próximos anos, tendo de aumentar juros, eventualmente. Espero que, até lá, tenhamos aproveitado esse fôlego para encaminhar medidas efetivas de controle da despesa obrigatória e de reequilíbrio das contas públicas. Se empurrarmos com a barriga as medidas duras, vai ser muito mais difícil, lá na frente, enfrentar o problema.