Existe um entendimento entre formuladores de política econômica de que um forte ajuste fiscal no início do próximo mandato presidencial é fundamental. O Brasil precisa de contas públicas estruturalmente equilibradas para retomar uma trajetória de crescimento sustentável. Contudo, detecta-se na sociedade, como ficou claro no apoio de parte expressiva da população aos caminhoneiros quando de sua paralisação, um descontentamento com a situação do país. Embora a inflação e a taxa de juros estejam historicamente baixas, a qualidade dos serviços públicos prestados e o mercado de trabalho vivem um mau momento. A segurança pública, a saúde e a educação são frequentemente apontadas como setores nos quais as políticas públicas estão sendo ineficazes. A taxa de desemprego ainda elevada se conjuga com uma qualidade do emprego muito aquém do que se verificava há três anos. Nesse contexto, discutiu-se no FGV IBRE cenários para o acerto das contas do governo a partir de 2019.
De início, foi preciso definir o que seria um ajuste fiscal “necessário”. Essa definição depende de muitas variáveis e está ligada à questão das contas fiscais ajustadas ao ciclo econômico. Simplificadamente, uma das interrogações principais é sobre qual será a recuperação da receita tributária vinculada somente à retomada da economia. O debate sobre o tamanho mínimo necessário do ajuste das contas públicas já vem sendo travado de forma intensa no FGV IBRE. Sem entrar em mais detalhe, é possível dizer que, na ausência de um aumento do resultado primário de pelo menos três pontos percentuais (p.p.) do PIB, dificilmente será produzida uma dinâmica da dívida pública conducente ao equilíbrio macroeconômico de médio e longo prazo.
Quais as chances de que isso ocorra a partir de 2019 num horizonte temporal suficientemente rápido para recolocar a economia brasileira numa trajetória virtuosa? As respostas a essa pergunta variam entre os pesquisadores do FGV IBRE. Grosso modo, três correntes de cenários foram apresentadas.
O pesquisador Samuel Pessôa está entre os mais otimistas. Ele nota que cientistas políticos têm apontado certo consenso na sociedade brasileira de que as políticas públicas têm que ser inclusivas. Esse fato explica o aumento da carga tributária desde a redemocratização, mas ao mesmo tempo existe uma demanda social de que a inflação permaneça baixa. Dessa forma, Pessôa considera provável que, seja quem for eleito, o novo ou a nova presidente fará uma consolidação fiscal em 2019, cujos termos serão debatidos com a sociedade ao longo do processo eleitoral.
Assim, apesar da crise aguda do governo Temer, a política fiscal tende a ser preservada. Como escreveu Pessôa em recente relatório aos clientes da gestora Reliance, da qual é economista-chefe, “de fato a pinguela ruiu com o episódio dos caminhoneiros e teremos que chegar do outro lado do rio a nado. Já estamos nadando. A água do rio não é nada limpa e vamos ficar mais tempo nos recuperando dessa travessia do que eu imaginava”. Ainda assim, ele crê que a travessia será feita.
Para o economista, o equilíbrio político brasileiro, apesar de levar a um desempenho econômico insatisfatório, é suficiente para fazer com que a elevada inflação seja um fenômeno confinado ao passado. O próximo presidente receberá um país com inflação de 4% e Selic (taxa básica de juros) em torno de 6,5%. Nessas condições, a realização de um ajuste fiscal poderá trazer a recompensa do crescimento econômico num horizonte temporal suficientemente breve para configurar um incentivo positivo poderoso para quem vencer as eleições deste ano.
Adicionalmente, o hiato do produto ainda bastante aberto no início de 2019 permitirá que a economia cresça uma média anual de 3% ao longo do próximo mandato sem trazer desequilíbrios externo ou inflacionário – o que deve contribuir para uma reeleição tranquila em 2022. Ao contrário, se não fizer o ajuste fiscal, o próximo presidente trará de volta a inflação e não deve ir além do primeiro mandato, segundo Pessôa. Consequentemente, ele vê incentivos suficientemente fortes para que seja realizado o ajuste fiscal necessário não só no caso de eleição de um candidato centrista, mas mesmo na hipótese de vitória de um populista.
Uma visão distinta é apresentada por Armando Castelar, pesquisador do FGV IBRE. Ele se refere não apenas ao ajuste fiscal, mas de forma mais geral à capacidade de reação do próximo governo à difícil situação econômica do país. O ponto enfatizado por Castelar é o de que candidatos diferentes, uma vez eleitos, devem ter distintas capacidades de lidar com os problemas. O pesquisador divide a questão em três dimensões. A primeira delas é de que há diferenciação entre as promessas eleitorais que já vêm sendo feitas, de forma que aquilo que pode configurar estelionato eleitoral para um eventual vencedor pode não ser o mesmo para outro.
Em segundo lugar, os candidatos têm graus variados de experiência administrativa: alguns deles jamais ocuparam qualquer cargo executivo, no setor público em especial, mas tampouco no setor privado. Castelar observa que gerir um país não é só sentar na cadeira presidencial e dar ordens. Uma dimensão fundamental do trabalho presidencial é o de formar equipes, o que Arminio Fraga, ex-presidente do Banco Central, costuma chamar de “RH do governo”. Evidentemente, não faltam interessados em ocupar os principais cargos do governo federal, mas a tarefa de convocá-los e montar um time entrosado não é nada trivial. Segundo Castelar, quem nunca ocupou cargo executivo tende a não ter essas equipes, pois jamais precisou delas ou teve oportunidade de com elas interagir. Isso é algo que pode ser dito de Lula no início do seu primeiro mandato, mas, por outro lado, o ex-presidente contava com os quadros do PT, que tinham ocupado cargos em governos estaduais e municipais.
A terceira dimensão refere-se ao fato de que diferentes candidatos terão, caso cheguem ao poder, variados graus de facilidade de lidar com um Congresso muito fragmentado. Esse problema será particularmente agudo no caso de algum candidato de partido pequeno vencer as eleições presidenciais. Também é um problema para cuja solução a experiência conta muito. O economista observa que Lula sofreu com a dificuldade de formar uma base sólida no Congresso, o que acabou levando aos expedientes irregulares e ilegais na base dos escândalos do mensalão e do petrolão. Dilma e seu impeachment são, naturalmente, um exemplo emblemático dessa dificuldade.
Para Castelar, qualquer candidato que seja eleito este ano se verá forçado a fazer o ajuste fiscal, sob pena de o risco país disparar, levando consigo o dólar e os juros, e jogando o governo numa situação dificílima logo na partida do mandato. Ainda assim, levando em conta as dimensões discutidas nos parágrafos acima, o pesquisador considera que, para além da capacidade de “fazer acontecer” o ajuste, haverá diferenças em torno da ênfase no aumento da carga tributária ou na contenção de gastos, ou em mais ou menos gradualismo, entre outros fatores.
Uma terceira visão sobre o problema da viabilidade do ajuste fiscal em 2019 foi desenvolvida pelo pesquisador Fernando Veloso em recentes discussões no FGV IBRE. Ele também acredita, como Castelar, que qualquer presidente eleito fará algum ajuste, e que a forma e a magnitude dependerão do candidato específico que sair vencedor. No entanto, Veloso crê que há dificuldades de se fazer um ajuste fiscal do tamanho necessário que transcendem a questão de quem será o presidente eleito e mesmo de qual será sua coalizão no Congresso. O economista tem uma série de argumentos para sustentar essa posição.
Ele nota inicialmente que, como mostram trabalhos do cientista político Carlos Pereira e coautores, a qualidade da gestão da coalizão governamental é muito importante para a aprovação de reformas. Os indicadores mostram que houve melhora dessa gestão no governo Temer, e o presidente e seu partido sempre tiveram a reputação de grande capacidade de negociação junto ao Congresso. No entanto, apesar da aprovação de reformas importantes do ambiente de negócios (trabalhista e TLP, por exemplo), o avanço na resolução da crise fiscal foi pequeno. Embora tenha sido aprovada uma medida muito importante como o teto de gastos, sua viabilidade foi comprometida pela não aprovação da reforma da Previdência e pela aprovação de reajustes expressivos de salários do funcionalismo, sucessivos programas de Refis e, mais recentemente, pelo subsídio ao consumo de diesel.
Um segundo ponto, para Veloso, é que um ajuste fiscal muito gradual não vai funcionar, como se pôde comprovar recentemente. Para ele, ficou claro que a estratégia gradualista é muito vulnerável à complacência que se instala no Executivo, no Congresso e mesmo no mercado financeiro, quando a situação externa é favorável e a economia começa a melhorar. Adicionalmente, a situação fiscal se agravou, o que também exige um ajuste mais forte. O problema, na visão de Veloso, é que mesmo um ajuste gradual enfrenta enorme resistência. O teto de gastos já foi, na sua interpretação, uma medida bastante gradual e, mesmo assim corre sério risco de não ser cumprido ou de ser modificado.
Para além das questões eleitorais, o pesquisador do FGV IBRE vê um problema sério de coordenação das demandas por recursos. O teto de gastos foi muito importante para explicitar a restrição orçamentária. No entanto, ao contrário do seu objetivo de acomodar as diversas demandas por recursos no orçamento, o que se tem visto são tentativas de contornar o teto por meio de isenções tributárias e promessas de assessores de candidatos de modificar a emenda constitucional, seja em termos de redução do prazo ou exclusão de itens como investimento.
Veloso considera que o âmago do problema é entender por que todas essas dificuldades existem. Ele acredita que um problema central é a fragilidade institucional do que tenho chamado de “defesa do interesse difuso”. Veloso enxerga o Estado brasileiro como extremamente vulnerável à captura por grupos de interesse, o que se reflete não somente na crise fiscal, mas também no ambiente de negócios disfuncional. Na sua interpretação, a greve dos caminheiros, o apoio de grande parte da população ao movimento e a reação rápida e desastrada do Executivo e do Congresso mostram que, ao contrário do que muitos afirmam, os representantes dos eleitores não estão desconectados das ruas. O problema, a seu ver, parece ser, ao contrário, de que estão excessivamente conectados a determinados segmentos, mesmo que o atendimento de suas demandas específicas seja feito em detrimento do restante da sociedade.
O pesquisador acrescenta ser pouco provável que esse quadro no Congresso mude nas próximas eleições. Mesmo que haja renovação significativa em termos de pessoas, os fundos partidário e eleitoral favorecem os políticos incumbentes. Segundo Veloso, as barreiras à entrada são imensas para candidatos que não façam parte das máquinas partidárias.
Na verdade, ele prossegue, o problema parece ir além da representação no Congresso, e tem também a ver com o fato de que uma parcela expressiva da sociedade não parece estabelecer qualquer relação entre o aumento do gasto público e o desastre econômico do período recente. Ao contrário, a crise parece ter desencadeado uma exacerbação do conflito distributivo, em que cada grupo procura proteger seus recursos às custas do restante da sociedade.
Por todas essas razões, Veloso crê que será muito difícil fazer um ajuste fiscal na dimensão necessária. Para que isso seja possível, na sua ótica, será imprescindível não somente uma liderança determinada por parte do presidente eleito e uma forte coalizão no Congresso, mas um grande e persistente esforço de comunicação e convencimento da sociedade sobre a necessidade das reformas. A médio prazo, será essencial discutir formas de melhorar a institucionalidade da “defesa do interesse difuso”.
O texto é resultado de reflexões apresentadas em reunião por pesquisadores do IBRE. Dada a pluralidade de visões expostas, o documento traduz minhas percepções sobre o tema. Dessa feita, pode não representar a opinião de parte, ou da maioria, dos que contribuíram para a confecção deste artigo.