O governo havia se comprometido a zerar o resultado primário em 2024, por meio de um ajuste fiscal a ser realizado basicamente pelo lado da receita. Por conta disso, a arrecadação bruta da União em 2024 teria que ser reforçada em cerca de R$ 169 bilhões, a serem obtidos por um amplo pacote de medidas, das quais apenas uma parte já foi aprovada.
Mesmo com esse objetivo em jogo – o que nunca pareceu simples, como discutido na Carta do IBRE de outubro de 2023 –, o cumprimento de metas de primário tão arrojadas até o fim deste mandato presidencial (zero em 2024, +0,5% do PIB em 2025, e +1% em 2026, com intervalo de tolerância de +/- 0,25 p.p.) exige contingenciamento relevante de despesas nos começos de todos esses anos. Isso porque, mesmo que as medidas necessárias pelo lado das receitas sejam aprovadas e implementadas, sua materialização não é instantânea e suas magnitudes carregam alguma dose de incerteza.
Conforme apontou o Tesouro Nacional em relatório semestral publicado em julho deste ano, caso obtenha cerca de 2,5% do PIB a mais de receitas até 2026 (ante a projeção feita no final de 2022 para 2023), o governo federal ainda é obrigado a contingenciar despesas, nos começos de 2024, 2025 e 2026, nos montantes aproximados de R$ 57 bilhões, R$ 64 bilhões e R$ 76 bilhões. Importante notar que esses números podem representar um bloqueio efetivo menor de despesas, caso se leve em conta o chamado empoçamento de gastos (recursos orçamentários que as áreas de governo não conseguem gastar), cuja média anual tem sido em torno de R$ 22 bilhões. Ainda assim, os níveis de contingenciamento são bastante elevados, e recairiam, naturalmente, sobre os investimentos públicos, ameaçando a execução de uma das principais bandeiras de campanha do novo governo, o PAC.
Fica evidente que a situação fiscal está longe de confortável, e não é por outra razão a celeuma em torno da meta. O contingenciamento de despesas necessário para se atingir os déficits primários almejados no início dos debates, mesmo após todo o hercúleo esforço de aprovação de medidas de aumento de receitas (supondo que seja integralmente bem-sucedido), representaria uma compressão muito forte das despesas discricionárias, sobretudo caso a materialização efetiva dessas medidas se frustre em termos de magnitude e timing.
Esse intenso aperto orçamentário e fiscal, mesmo diante da nova regra que permitiu algum aumento real da despesa (ao contrário do teto) e do grande esforço de aumento da carga tributária, tem como uma de suas causas a indexação de uma grossa fatia das despesas federais a variáveis que aumentam mais do que o percentual determinado para o conjunto do gasto pela nova regra fiscal introduzida este ano.
O caso mais emblemático é o do salário mínimo nacional, já levando em conta a nova política de reajuste definida a partir deste ano pela Lei no 14.663/23 (variações do INPC de T-1 e do PIB real de T-2), em um contexto no qual o quantitativo de benefícios previdenciários, sozinho, cresce, mesmo com a reforma de 2019, pouco abaixo do teto da variação real da despesa definido pela nova regra fiscal para 2024 (+2,5%). O salário mínimo nacional indexa cerca de 50% das despesas primárias da União (embora também gere algum aumento da arrecadação previdenciária).
Mas há outro fenômeno, o tema central desta Carta, que exerce grande pressão intraorçamentária e dificulta não só a consecução das metas fiscais como também a gestão eficiente de muitas políticas públicas. Trata-se da vinculação, legal ou constitucional, de um grupo crescente de despesas às receitas. É de fácil compreensão intuitiva que um ajuste fiscal baseado no aumento de receita torna-se mais difícil quando o crescimento da receita automaticamente se traduz em mais despesas. E esse é, de fato, um dos problemas que a política fiscal brasileira enfrenta neste momento.
Bráulio Borges, pesquisador associado do FGV IBRE, detalha o atual perfil das despesas vinculadas à receita, que cresceram recentemente ao reincluírem a saúde e a educação, e ao incluírem pela primeira vez as emendas parlamentares. No PLOA 2024, essas despesas corresponderão a quase R$ 500 bilhões, pouco menos de 23% do limite de despesas estabelecido pela nova regra fiscal.
No caso do gasto mínimo federal com saúde (a rubrica conhecida como “ações e serviços públicos de saúde”, ASPS), até 2015 valia a Emenda Constitucional (EC) 29/2000, que definiu o piso do gasto como sendo o valor empenhado em 1999 reajustado em 5% e corrigido pelo PIB nominal dali em diante. Em 2015, entretanto, a EC 86 estabeleceu a vinculação à receita corrente líquida (RCL), iniciando-se em 13,2% e crescendo progressivamente até 15%. Mas no ano seguinte se aprovou a EC 95/2016, do teto de gastos, que antecipou os 15% da RCL para 2017 e, entre 2018 e 2023, determinou a correção do gasto mínimo com ASPS apenas pela inflação do IPCA. Já a EC 126/2022, conhecida como PEC da Transição, levou à aprovação da Lei Complementar (LC) no 200/2023, que extinguiu o teto de gastos. Com isso, voltou a valer a regra preexistente, isto é, a EC 86, com a vinculação a 15% da RCL do ano corrente, que valerá para os orçamentos de 2024 em diante (salvo nova mudança constitucional).
Na educação, o gasto mínimo federal com as chamadas “ações com manutenção e desenvolvimento do ensino”, a rubrica MDE, foi vinculado a 18% da receita líquida de impostos (RLI) na Constituição de 1988. É importante notar que a RLI é substancialmente menor que a RCL, pois a primeira não inclui as contribuições, tributos que a União não divide com os demais participantes da Federação. Em 2024, a RCL corresponderá a 66,4% da receita primária total da União, e a RLI a apenas 27,5%. Como no caso da saúde, a EC 95/2016 do teto de gastos alterou a correção da rubrica MDE, que deixou de ser vinculada à RLI, e passou a acompanhar a inflação do IPCA. Também de forma semelhante, com o fim do teto de gastos este ano, voltou-se à regra antiga, de 18% da RLI do ano corrente, o que vale a partir de 2024.
Ainda na área da educação, o “novo Fundeb” (complementação federal aos gastos com ensino básico de estados e municípios) aprovado pela EC 108/2020 prevê que o total repassado pela União cresça até um máximo de 23% do total das receitas dos entes subnacionais. Como explica Borges, as receitas dos entes subnacionais incluem tributos próprios arrecadados por estados e municípios, mas também o Fundo de Participação dos Estados (FPE) e o Fundo de Participação dos Municípios (FPM). Esses fundos são compostos por parcela da arrecadação federal de impostos (mas não das contribuições). Dessa forma, o Fundeb também é uma receita vinculada às receitas da União (bem como às receitas próprias dos governos regionais). Uma parcela de 30% da complementação ao Fundeb realizada pela União é contabilizada para o cálculo do gasto mínimo constitucional com ações de MDE.
Ainda na lista das vinculações de despesas à receita está o Fundo Constitucional do Distrito Federal (FCDF), definido pela Lei no 10.633 em R$ 2,9 bilhões em 2003, a serem corrigidos anualmente pela variação da RCL da União. As despesas do fundo, que financia serviços públicos do DF, estão orçadas em R$ 23 bilhões para 2023. O último item mencionado por Borges são as emendas parlamentares obrigatórias que, com a aprovação do Regime Fiscal Sustentável este ano, deixaram de ser corrigidas pela inflação. As emendas individuais passam a corresponder a 2% da RCL, e as de bancada a 1%, da RCL, ambas tendo como referência a receita do ano anterior. O fato de ser o ano anterior é relevante. A vigência das novas regras se inicia em 2024, e, portanto, só a partir de 2025 as emendas podem ser corrigidas pelo percentual da RCL do ano anterior. Para 2024, a correção pela inflação foi mantida.
Uma faceta importante apontada por Borges no retorno à vinculação dos gastos federais de saúde e educação a medidas de receita da União, com o fim do teto de gastos, são as repercussões práticas, bem diferentes, desse fato em cada uma dessas rubricas de gasto público. Basicamente, o gasto em saúde sempre foi muito próximo ao mínimo obrigatório, e, portanto, a mudança faz muita diferença. Já na educação, o governo de hábito despendeu bem mais que o mínimo constitucional, de tal forma que a volta ao critério de correção antigo é menos impactante (além de criar espaço para algum contingenciamento desta última).
Na saúde, na fase do teto de gastos, levando-se em conta valores acumulados entre 2018 e 2022 (já que em 2017 o gasto foi de 15% da RCL), a correção pelo IPCA retirou do orçamento do setor R$ 37 bilhões, considerando-se um cenário contrafactual em que a vinculação à receita tivesse sido mantida. A EC 126/2022 (PEC da Transição) recompôs o gasto de ASPS para 2023 em R$ 22,7 bilhões, relativamente ao Projeto de Lei Orçamentária (PLOA) de 2023, enviado ao Congresso em agosto de 2022. Esse valor corresponde precisamente à diferença entre reajustar o gasto de 2022 pelo IPCA e defini-lo como 15% da RCL do orçamento de 2023.
Já na educação, a execução orçamentária ficou bem acima tanto da correção pelo IPCA (mínimo que valeu sob o teto de gastos da EC 95/2016) quanto do referencial de 18% da RLI, entre 2017 e 2020. Em 2021, a execução praticamente empatou com os 18% da RLI, e, apenas em 2022, ficou abaixo, em cerca de R$ 6,7 bilhões.
O problema das vinculações de despesa à receita, num ajuste fiscal planejado para ocorrer basicamente pelo lado da arrecadação, aparecem de forma bastante evidente no caso do mínimo constitucional da saúde. De acordo com projeção do Ministério do Planejamento publicada em agosto deste ano, esse mínimo saltará de R$ 168,1 bilhões em 2023 para R$ 218,4 bilhões em 2024, num aumento de 30% (cerca de R$ 50 bilhões). Boa parte desse aumento se deve à projeção de aumento da carga tributária (aumento este ainda longe de estar garantido), o que automaticamente eleva a base sobre a qual se calcula os 15% da RCL. Esses R$ 50 bilhões de aumento do orçamento com saúde, além de representarem um valor muito próximo do contingenciamento previsto para ocorrer em fevereiro (caso a atual meta fiscal não seja alterada), também não são contingenciáveis (mesmo que as receitas que balizaram este aumento não se concretizem).
Manoel Pires, pesquisador associado do IBRE, estima de forma bastante preliminar que, dados todos os aumentos automáticos de despesa (pela vinculação) associados ao aumento da arrecadação, cerca de 20-25% desta alta de impostos deve ser perdida na partida em termos de melhoria do resultado primário.
Isso se soma ao problema de que, para fechar suas próprias contas pelo lado da receita, a União tem que arrecadar substancialmente mais que o necessário, pois parte dos tributos adicionais será distribuída automaticamente para estados e municípios (via partilha federativa). Assim, o governo mirou em seu pacote tributário uma arrecadação extra de pouco menos de R$ 170 bilhões em 2024 para obter cerca de R$ 125 bilhões necessários ao cumprimento das metas de primário do governo central. Essa diferença de quase R$ 45 bilhões irá engrossar as receitas disponíveis dos governos regionais sem nenhum esforço por parte deles (algo que não deveria ser ignorado em termos das discussões sobre compensação das perdas de receitas de ICMS geradas por decisões tomadas pelo governo federal em 2022, muito menos em termos do tamanho do Fundo de Desenvolvimento Regional da reforma tributária da PEC 45/2019).
Outra questão importante levantada por Pires leva em conta a elevação do gasto com Previdência e benefícios sociais – acima do percentual do gasto como um todo definido pelo novo arcabouço fiscal – causado pelo aumento do salário mínimo nacional. Esses mecanismos de indexação e vinculação fazem com que, mesmo o governo tendo removido o teto de gastos, o ganho de espaço para tomar decisões de aumento de outras despesas permaneça relativamente exíguo. Em outras palavras, o novo arcabouço fiscal criou um espaço de despesa adicional em relação ao teto de gastos que foi grandemente consumido pelo aumento expressivo do orçamento para o Bolsa Família (de 1,1% do PIB em 2022 para 1,7% de 2023 em diante), pela nova política de reajuste real do salário mínimo nacional e por aumentos automáticos de dispêndio independentes de decisões do Executivo.
Borges chama atenção ainda para o fato de que a vinculação de despesas à receita também cria problemas para gerir de forma eficiente as políticas públicas. As receitas tributárias são, por sua própria natureza, bastante voláteis, e a boa condução de áreas como saúde e educação depende de maior previsibilidade e estabilidade de receitas em bases plurianuais. O pesquisador do FGV IBRE nota que, no período de 2009 a 2022, a RCL chegou a uma variação anual máxima de 55,9%, e uma variação mínima de -31%. A RLI teve variação máxima de 34,1%, e mínima de -9,6%. Já o atual critério de variação das despesas do novo arcabouço fiscal implica variação máxima de 2,5% e mínima de 0,6%.
Por outro lado, o economista critica a desindexação e desvinculação completas das despesas, o chamado “orçamento base zero”, sobretudo quando se leva em conta “o ciclo político-eleitoral e a miopia dos políticos, que geram muito mais incentivos para construir ‘estradas’ e não ‘escolas’”, nas palavras do pesquisador.
Borges cita estudos que efetivamente encontram relação de causalidade entre aumento de dotações e melhoria de resultados de políticas públicas, como Bentz (2022) para o caso da educação básica. Adicionalmente, o pesquisador do FGV IBRE aponta a evidência indireta da criação do SUS e do aumento da carga tributária de 1999-2005, que levaram a algumas décadas de forte expansão do gasto per capita em saúde no Brasil. Entre 2000 e 2019, nos três níveis da Federação, esse gasto mais do que dobrou. Num processo coincidente, a expectativa de sobrevida aos 65 anos, que de 1950 a meados da década de 90 manteve-se entre 11/12 anos para homens e mulheres, saltou neste século para cerca de 20 anos, para mulheres, e aproximadamente 17/18, para os homens.
Se isso é uma indicação de que os meios, isto é, o volume de recursos, importam para a qualidade das políticas públicas, Borges alerta para o risco de se cair na visão extrema de que só os meios, e não a eficiência, são necessários. Ele lembra do caso dos municípios do Ceará, que se situaram do meio para cima da distribuição dos resultados do Ideb (exame nacional de avaliação de nível de aprendizado no ensino fundamental das escolas de redes municipais e estaduais), apesar de, no contexto brasileiro, estarem nos níveis mais baixos de gastos por aluno.
Em conclusão, Borges avalia que o aumento da indexação de despesas às receitas a partir de 2024 traz desafios adicionais para a gestão fiscal – uma consolidação fiscal amparada em aumento da carga – como também para a gestão das políticas públicas financiadas por esses mecanismos. Na sua visão, a vinculação das despesas às receitas não parece ser o sistema mais adequado. As razões são a elevada pró-ciclicalidade e a menor previsibilidade (inclusive por conta das incertezas quanto à aprovação das medidas necessárias para entregar as metas fiscais). Ademais, mudanças rápidas na estrutura demográfica também afetam o mix desejável de gastos entre saúde e educação.
Assim, afastada a ideia do orçamento base zero, o economista pondera que “algum tipo de indexação parece ser o melhor caminho, talvez definindo uma trajetória de ganhos reais do gasto per capita e com alguns mecanismos atrelados a desempenho”. Nessa linha, para Borges, o ideal seria o governo priorizar, na medida do politicamente possível, as alterações nas vinculações de saúde e educação.
Em paralelo, Borges defende a implementação efetiva da agenda de revisão periódica de gastos (spending reviews), que permitiria melhorar a eficiência do gasto já realizado, com eventual realocação dentro do Orçamento Geral da União e mesmo geração de alguma economia fiscal em termos do resultado primário.
O texto é resultado de reflexões apresentadas em reunião por pesquisadores do IBRE. Dada a pluralidade de visões expostas, o documento traduz minhas percepções sobre o tema. Dessa feita, pode não representar a opinião de parte, ou da maioria, dos que contribuíram para a confecção deste artigo.