Nos últimos anos, ocorreu um crescimento expressivo do volume de emendas parlamentares no orçamento federal. Em termos nominais, as emendas parlamentares saíram de R$ 6,14 bilhões em valores empenhados em 2014 para um montante autorizado de R$ 44,67 bilhões em 2024. As emendas, que correspondiam a 3,95% do conjunto das despesas discricionárias em 2014, chegaram a um pico de 28,78% em 2020 e, em 2024, devem representar 20,03% das discricionárias. Em 2014, das transferências federais diretas para municípios, estados e entidades privadas, isto é, dos recursos discricionários não executados diretamente pela União, 83% foram feitas pelo Executivo federal e 17% foram emendas do Legislativo (esses valores não incluem fundos de participação). Em 2023, as transferências do Executivo foram 54% do total, e as do Legislativo (emendas), 46%.
Essa grande expansão do papel das emendas parlamentares nos últimos dez anos reflete um conflito entre Legislativo e Executivo em relação à forma como o orçamento é elaborado e executado. Para muitos observadores, o modelo atual, com emendas muito infladas em relação ao passado recente, descoordena a ação pública, pois os gastos não são alocados dentro de programas estruturados. É a visão de que a multiplicação das emendas pulveriza o dinheiro público em ações paroquiais, em vez de se integrarem numa estratégia nacional de investimento do Estado.
Essa crítica subentende que o Congresso Nacional é incapaz de alocar recursos, quando considerados em seu conjunto, de forma benéfica para o país. E é verdade que algo nessa linha vem ocorrendo nos últimos anos no Brasil. O Congresso tende a não discutir resultados de políticas, focando mais em como a alocação de recursos gera retorno eleitoral para os legisladores. Há uma tendência a priorizar questões menores e mais localizadas, vinculadas às bases eleitorais pulverizadas dos parlamentares, em detrimento de ações de mais fôlego, que atendam o interesse público de forma mais ampla.
Por outro lado, é igualmente verdade que, em boa parte das democracias, o Legislativo também participa do processo de definição de prioridades para o emprego do dinheiro público. Inclusive, essa participação é um dos aspectos do funcionamento das instituições democráticas que confere legitimidade política ao orçamento público.
Manoel Pires e Carolina Resende (respectivamente, coordenador e pesquisadora do Centro de Orçamento e Política Fiscal do FGV IBRE), que organizaram o material no qual se baseou esta Carta, observam adicionalmente que existe uma visão distorcida do significado de impositividade orçamentária. O orçamento brasileiro não é impositivo, e sim autorizativo, e o que está sendo qualificado com essa palavra é a parcela das emendas parlamentares que o Congresso quer ver executadas e pagas pelo governo.
Pires explica que, em países que têm orçamento impositivo, o processo legislativo orçamentário é forte e coordenado, e nele é definida a restrição macroeconômica que tem que ser respeitada nas negociações entre Executivo e Legislativo para montar o cronograma anual de gasto público. A partir do orçamento fechado, o processo se torna impositivo, no sentido de que o Executivo tem que executar o que foi orçado, sem discricionariedade e sem contingenciamento.
Para melhor encaminhar a discussão sobre o atual quadro das emendas parlamentares, Pires e Resende recapitularam a história desse dispositivo desde 1995.
A Resolução no 2 do Congresso, de 1995, estabeleceu a concepção original das emendas na fase da redemocratização. Antes dessa data, não havia regulamentação. A Resolução no 2 criou dois tipos de emenda. A individual representava interesses locais, tinha previsão de até 20 emendas por parlamentar, e sua execução dependia de barganha com o Executivo. Já as emendas coletivas, de bancada e comissão, tinham viés estruturante, como projetos de investimento, com previsão de até dez emendas para as bancadas estaduais, até cinco para bancadas regionais e até cinco para comissões permanentes. Da mesma forma que nas emendas individuais, tampouco havia obrigatoriedade de execução.
Os pesquisadores do FGV IBRE observam que, nesse contexto institucional estabelecido pela Resolução no 2 de 1995, o Poder Executivo tinha grande poder de barganha, relativamente ao Legislativo, pelo papel de escolher quais emendas executar. A oposição, em tese, e muitas vezes na prática, podia ficar a ver navios em termos de execução das emendas dos seus parlamentares. Legisladores governistas propensos a votar contra o Executivo em alguma matéria específica também podiam ser induzidos a se alinhar ao governo no processo de liberação (ou não) de suas emendas.
Com a promulgação da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) em 2001, a partir de 2002 foi estabelecido o dispositivo do contingenciamento orçamentário de despesas discricionárias para situações de risco de descumprimento da meta fiscal. Por outro lado, a LRF, ao colocar a meta de resultado primário como alicerce principal do regime fiscal, introduziu um viés de superestimação de receitas no processo orçamentário. Quanto maior a receita, maior a despesa, para uma mesma meta de primário.
Dessa forma, criou-se o sistema pelo qual, no processo de elaboração e aprovação do orçamento, a receita superestimada permitia que se acolhessem todas as despesas, contornando-se o conflito distributivo. Após aprovação do orçamento, o poder ficava nas mãos do Executivo, ao definir como seria o contingenciamento, para de fato fazer com que a despesa fosse compatível com a receita diante de uma determinada meta de resultado primário. Assim, a busca efetiva do equilíbrio fiscal, com todos os conflitos entre grupos de interesse que sua consecução implica, era transferida da elaboração para a execução do orçamento.
Era a fase em que se lançou a crítica de que o orçamento no Brasil é uma “peça de ficção”, como nota Bráulio Borges, pesquisador do FGV IBRE e membro do Centro de Orçamento e Política Fiscal do FGV IBRE. Segundo Pires, o modus operandi era de se fazer um contingenciamento forte no início do ano, e ir relaxando as restrições – incluindo aí a retenção de emendas parlamentares – à medida que (e se) a arrecadação surpreendesse para cima. Esse jogo institucional, nota o economista, funcionou bem durante os anos 2000, em função do crescimento econômico mais rápido do país nessa década, que trouxe expansão vigorosa da receita. Boa parte da receita que se considerava como inflada revelou-se, na verdade, efetiva. O crescimento, de certa forma, arbitrou o conflito distributivo, bem como o forte aumento da carga tributária, de cerca de 6,5 p.p. do PIB entre 1999 e 2004.
Os problemas surgiram quando o crescimento econômico desacelerou na primeira metade da década passada. Com o sistema político habituado a superestimar receitas no processo orçamentário, mas agora sem surpresas positivas na arrecadação, os contingenciamentos passaram a ser mais contundentes. A tendência do governo naquele momento foi de concentrar o contingenciamento mais nas emendas parlamentares e menos nos gastos discricionários do próprio Poder Executivo.
Essa nova fase começou a tomar forma por volta de 2011/12, fazendo nascer uma insatisfação do Congresso, que foi crescendo nos anos subsequentes. Em 2011, para cumprir a meta, o governo contingenciou a totalidade das emendas parlamentares e manteve esse contingenciamento até o final do ano.
Em reação, o Congresso iniciou um processo de normatização das emendas, de diversas formas (emendas constitucionais, dispositivos na Lei de Diretrizes Orçamentárias etc.), com objetivos tanto de reservar recursos orçamentários para as emendas como de garantir sua execução, reduzindo o poder de barganha do Executivo.
A EC 86, aprovada em 2015, criou a vinculação das emendas individuais a 1,2% da receita corrente líquida (RCL). A EC 86 também introduziu uma regra de impositividade: não o pagamento de todas as emendas, mas sim que o contingenciamento tem que ser proporcional entre as despesas discricionárias do Executivo e as emendas. Em 2019, foi criada a vinculação das emendas de bancada a 1% da RCL, pela EC 100. A vinculação de emendas à RCL, portanto, subiu para 2,2%. Também em 2019, a EC 105 criou a transferência especial, conhecida como “Pix orçamentário”: os recursos vão para prefeituras e governos estaduais sem objetivo definido, e estes têm total liberdade para alocar os repasses, sem prestação de contas.
Já o chamado “orçamento secreto”, ou as emendas de relator-geral, foi criado na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2020. Pelo dispositivo, o relator do orçamento destinava verbas orçamentárias a projetos escolhidos por parlamentares, mas sem a identificação destes e com baixa transparência sobre o emprego dos recursos. Não há vinculação ou impositividade mas, na prática, como observa Resende, a execução do orçamento secreto nos anos em que o dispositivo existiu, refletindo o poder de barganha ampliado do Congresso em relação ao Executivo, foi de quase 100%. Já Pires nota que, durante certo período iniciado em 2020, o Executivo “terceirizava” as ações para aprovação de suas pautas na Câmara para o presidente da Casa, que, por sua vez, utilizava as emendas de relator como ferramenta de barganha com os parlamentares.
Em 2022, as emendas de relator foram declaradas inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal (STF), na transição de governo. Nesse contexto, a EC 126/2022, conhecida como “emenda da transição”, aumentou o percentual de vinculação das emendas individuais de 1,2% para 2% da RCL. Isso foi parte do acordo político no âmbito do qual o orçamento secreto foi extinto. Na verdade, o 0,8% adicional da RCL representava o equivalente à metade do valor total das extintas emendas de relator, e esses recursos continuaram a ser alocados pelo Legislativo como emendas individuais; a outra metade, segundo o acordo, serviu para aumentar as despesas discricionárias do Executivo.
Em termos dos desdobramentos mais recentes, houve aumento das emendas de comissão, o que também está inserido no grande acordo para acabar com o orçamento secreto. Adicionalmente, na elaboração do Projeto da Lei de Diretrizes Orçamentárias (PLDO) de 2024, no segundo semestre do ano passado, iniciou-se a discussão sobre estabelecer um cronograma de pagamento das emendas parlamentares, na direção de aumentar o controle da execução orçamentária. E o último capítulo da queda de braço entre Executivo e o Legislativo, no terreno das emendas parlamentares, foi o veto do presidente Lula a R$ 5,6 bilhões em emendas de comissão, e as movimentações no Congresso para eventualmente derrubar esse veto. Segundo Pires, nessa linha de tempo, pode se caracterizar a fase de 2022 em diante – iniciada com a determinação do STF de que o orçamento secreto era inconstitucional seguida pela emenda da transição – como um período de reação do Executivo (que, aliás, participou das articulações em torno da decisão do Supremo). A EC 126 conseguiu reduzir um pouco as emendas parlamentares e ampliou as dotações orçamentárias, de forma a dar condições para que o governo tente usar o orçamento para coordenar a política pública e restabelecer o presidencialismo de coalizão.
Diante desse histórico recente de disputas entre Executivo e Legislativo em torno das emendas parlamentares, os pesquisadores do FGV IBRE envolvidos com as discussões desta Carta consideram irrealista certa posição, bastante comum entre os analistas, que advoga o retorno ao status quo anterior, em que o volume de emendas era bem menor e o Executivo tinha total discricionariedade para executá-las ou não. Os economistas do FGV IBRE notam que a experiência orçamentária em países com democracia avançada mostra que há um papel importante do Poder Legislativo na coordenação das políticas públicas, em conjunto com o Poder Executivo.
Para Pires, Resende e Borges, outra forma de abordar essa questão é encarar a atual situação como um processo em que o Congresso precisa definir de maneira mais clara seu papel na gestão orçamentária. E, nesse processo, corrigir vícios de atuação, definir as prioridades alocativas, monitorar a execução do orçamento e avaliar o que está sendo executado.
No curto prazo, os pesquisadores têm uma lista de sugestões para azeitar a interação entre Legislativo e Executivo no processo orçamentário, sem recuar no tempo em termos das emendas. A primeira delas é capacitar o Congresso Nacional, melhorando sua estrutura técnica e qualificando o método de definição de emendas. Eles também recomendam que se realize avaliação de retorno econômico e social das emendas, estabelecendo critérios mínimos para inclusão no orçamento público (como atender algum critério distributivo, responder a algum objetivo fundamental da República previsto na Constituição etc.).
Outra ação seria a de regulamentar a indicação de beneficiários das emendas de comissão. Segundo Resende, não há um instrumento formal que garanta uma decisão colegiada sobre a indicação da localidade do gasto. Isso, por sua vez, faz com que retorne em parte a lógica do orçamento secreto, pela qual um parlamentar ganha uma fatia do bolo orçamentário para dele dispor como quiser.
“Sem se identificar os beneficiários das emendas de comissão, está se criando quase que um novo orçamento secreto, só que mais pulverizado; em vez de um relator-geral fazendo as indicações que ele quer, será cada presidente de comissão fazendo as indicações que ele quer – a lógica é a mesma, com a apropriação de parte de um orçamento que é público”, aponta a economista. Ela nota que os R$ 5,6 bilhões vetados pelo presidente Lula, e ainda alvos de disputa, entram nesse contexto da discussão. Trata-se, portanto, de disputa bem atual e muito relevante.
Finalmente, há a sugestão de criar condições para fiscalizar as transferências especiais, as chamadas “emendas Pix”. Já a médio e longo prazos, os pesquisadores do IBRE pensam que o desenho institucional requer interação mais estruturada entre Executivo e Legislativo, pela qual o Congresso acompanhe as políticas de modo mais recorrente, tanto na elaboração da proposta orçamentária quanto na sua execução. No modelo atual, isso envolveria fortalecer as comissões temáticas (que tratam de saúde, educação etc.) para ampliar sua interação com as áreas setoriais do governo, ao mesmo tempo que devem ganhar mais força política no Congresso Nacional.
Pires se preocupa com o fato de que discussões que surgiram recentemente sobre uma “reforma orçamentária” se concentrem muito no redesenho de regras, como mudanças no conceito de restos a pagar, detalhes do processo orçamentário etc. Ele observa que não adianta mudar regras se não se cria uma nova cultura. “Mais importante do que discutir as novas regras em si, é que elas apontem e sinalizem uma nova cultura em que Executivo e Legislativo interajam colaborativamente em todo o processo orçamentário, como nas democracias mais maduras”, diz o economista.
Borges, por sua vez, nota que, há cerca de dez anos, o Congressional Budget Office (CBO) dos Estados Unidos começou a fazer, em conjunto com a Joint Committee on Taxation (JCT), a análise chamada de dynamic scoring. Trata-se de elencar prioridades em variados tipos de políticas públicas, definindo custos e benefícios das diversas propostas legislativas (incluindo os impactos macroeconômicos sobre PIB e emprego, bem como a resposta comportamental dos agentes a essas mudanças propostas). O economista pensa que, ou robustecendo a Instituição Fiscal Independente (IFI), vinculada ao Senado, ou criando alguma outra entidade, ao estilo do CBO (vinculado ao Congresso americano como um todo), o Brasil poderia introduzir algo ao estilo do dynamic scoring no processo legislativo-orçamentário. Esse tipo de análise certamente poderia interagir com a revisão periódica de gastos (spending reviews), que o Ministério do Planejamento vem buscando estruturar, aprofundando o trabalho iniciado pelo Conselho de Monitoramento e Avaliação de Políticas Públicas (CMAP) há alguns anos.
Já na questão da fiscalização das “emendas Pix”, Borges recorda que a Controladoria Geral da União (CGU), até meados da década passada, fiscalizava as contas de até 300 municípios por ano, escolhidos por sorteio. Ele nota que essa capacidade de fiscalização caiu dramaticamente, e hoje a CGU só consegue fiscalizar 60-70 municípios por ciclo anual. Dessa forma, o fortalecimento da CGU deveria entrar na pauta, pois o órgão é o principal ator institucional para funções como, por exemplo, fiscalizar as transferências especiais. Ele pensa também que a fiscalização poderia ser mais tempestiva, e não trazer resultados referentes a dois ou três anos antes, como hoje.
Em resumo, a visão dos pesquisadores do FGV IBRE não deve ser confundida com a defesa ipsis litteris da institucionalidade atual relativa às emendas parlamentares no Brasil, mas se trata, na verdade, da constatação de que não é nem realista nem desejável retroceder no tempo. Isso corresponderia a retornar a um período em que o Congresso, de forma infantilizada, não tinha participação quase nenhuma no processo orçamentário efetivo, e trocava votos por emendas irrelevantes em seu conjunto. Todas as mudanças e conflitos entre Executivo e Legislativo em torno das emendas parlamentares nos últimos dez a 15 anos refletem, na realidade, um Congresso que demanda a sua devida participação no processo orçamentário, o que, como já mencionado, é positivo para a evolução democrática do país.
Por outro lado, para cumprir esse papel, é fundamental que o Legislativo entenda que o uso dos recursos públicos tem que estar integrado na lógica de um projeto de país – que normalmente cabe ao Executivo liderar – e que, com mais poderes, devem vir também mais responsabilidades. É nesse sentido que o Brasil deve caminhar para uma nova cultura orçamentária.
O texto é resultado de reflexões apresentadas em reunião por pesquisadores do IBRE. Dada a pluralidade de visões expostas, o documento traduz minhas percepções sobre o tema. Dessa feita, pode não representar a opinião de parte, ou da maioria, dos que contribuíram para a confecção deste artigo.