Ênfase no ajuste pela receita é legítimo e viável, mas exige apuro técnico e força política

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O novo arcabouço fiscal, como já amplamente constatado nos debates que se seguiram à sua divulgação, pressupõe aumento da carga tributária como percentual do PIB para que as metas de resultado primário fixadas pelo governo até 2026 possam ser cumpridas. Uma discussão inicial relevante, portanto, é a de mapear com maior precisão a necessária ampliação da arrecadação como percentual do produto.

Bráulio Borges, pesquisador associado do FGV IBRE, investigou essa questão pelo prisma de três cenários que incorporam as novas regras fiscais, mas sem aumento de carga tributária; e os mesmos três cenários, com aumentos de carga necessários para se alcançar as metas de primário estipuladas: déficit de 0,5% do PIB em 2023, resultado nulo em 2024 e superávits de, respectivamente, 0,5% do PIB e 1% do PIB em 2025 e 2026.

O cenário base (mais provável) de Borges pressupõe que o PIB per capita real cresça 1,5% a partir de 2025, com uma diferença entre o deflator do PIB e o IPCA (efeito recorrente na economia brasileira que afeta favoravelmente a política fiscal) de 0,9 ponto percentual (p.p.) ao ano. O crescimento do PIB potencial é de aproximadamente 2% ao ano.

Esse cenário base embute crescimento da produtividade anual do trabalho de 1,5% a partir de 2025, comparado à média de 0,9% de 1995 a 2022. Segundo Borges, a reforma tributária e o aumento do investimento público, prometido pelo novo arcabouço fiscal, justificam o aumento anual de 0,6 p.p. do crescimento da produtividade – um acréscimo, aliás, que está implícito nas projeções de consenso do mercado de crescimento do PIB.

O pesquisador explica que, no conjunto de cenários em que as metas de resultado primário são atingidas, esse cumprimento de metas se refere especificamente ao período de 2023 até 2026, para quando elas foram fixadas. A partir de 2027, o exercício supõe somente o cumprimento das regras do arcabouço relativas à evolução das despesas, com aumento apenas orgânico da receita, e com resultados primários e de evolução da dívida pública que daí derivam.

Um dos principais resultados do exercício, para o cenário base, indica aumento de carga tributária acumulado em 2023, 2024, 2025 e 2026 de 1,51% do PIB, que chegaria a 1,7% do PIB no cenário mais desfavorável (em termos de crescimento e deflator), e cairia para 1,23% no mais favorável. Para que as metas sejam cumpridas ano a ano, o aumento de carga anualizado no cenário base deve ser, em 2023, 2024, 2025 e 2026, de 0,49%, 0,24%, 0,58% e 0,2% do PIB, respectivamente. 

Borges ressalta que todo esse aumento deve ser de carga tributária federal líquida, isto é, deduzida das transferências para estados e municípios.

Definido o montante de aumento de carga tributária acumulado em 2023-26 para que, com o novo arcabouço em vigor, as metas de primário sejam cumpridas, Borges chama a atenção para o fato de que a ampliação das receitas federais associadas ao setor extrativo mineral – um tema levantado e detalhado por ele mesmo recentemente – não resolve o problema.

Essas receitas (que derivam principalmente do petróleo) saltaram de uma média de 0,92% do PIB entre 2011 e 2020 para 1,81% e 2,58% do PIB, respectivamente, em 2021 e 2022. Mas elas devem cair para nível próximo a 2% do PIB em 2023, 2024 e 2025, chegando a 2,3% em 2026 e 2027, e só voltando a superar 2,5% em 2028. A partir daí, sobem até um pico previsto de 2,75% do PIB em 2031. 

Excluindo a hipótese de uma elevação imediata da carga tributária legal do setor extrativo (ou cotações internacionais muito mais altas nos próximos anos do que as indicadas pelos mercados futuros), não há à vista ganho de receita com o setor extrativo que ajude o governo a obter o 1,5% do PIB a mais de arrecadação para cumprir as metas de primário até 2026.

Por outro lado, nos cenários de Borges, resultados primários crescentes de 2027 em diante se explicam em parte considerável justamente pela perspectiva de que as receitas associadas ao setor extrativo mineral irão voltar a subir a partir de 2025/26, especialmente o óleo-lucro do regime de partilha (0,04% do PIB em 2022, chegando a 0,9% do PIB em 2031).

Em relação à evolução das despesas federais, Borges aponta, levando em conta projeções de consenso para as receitas líquidas da União até junho de 2023, bem como projeções próprias para as receitas não recorrentes, que a alta real das despesas em 2024 deverá ser de +0,9%, pouco acima do piso de +0,6% definido pela regra proposta. 

Nos cenários sem aumento de carga, a despesa real cresceria anualmente entre 1,3% e 1,6% em 2025-27, com o gatilho de 50% acionado todos esses anos. Apenas para recordar, o novo arcabouço determina limite de crescimento da despesa de 70% do aumento da receita, caindo para 50% (no ano seguinte) em caso de não cumprimento do resultado primário. Nos cenários com o aumento de carga recorrente necessário ao cumprimento da meta de primário, a despesa real cresceria no teto de 2,5% ao ano definido pela nova regra fiscal (o piso é de 0,6%) de 2025 a 2027.

Em percentual do PIB, a despesa passaria de 19% do PIB em 2023 para algo entre 18,2% e 18,5% do PIB em 2026 nos cenários sem aumento da carga (nos quais a meta de primário não seria cumprida). Nos cenários em que há aumento de carga, a despesa em 2026 se situaria entre 18,6% (cenário de maior crescimento do PIB e deflator) e 19,1% (cenário de menor crescimento do PIB).

Borges nota que a despesa federal, que atingiu um pico de 19,9% do PIB em 2016, caiu para 18,1% em 2021 e 2022 (desconsiderando o acerto contábil associado ao Campo de Marte no ano passado). Um fator a ser levado em consideração como pano de fundo da recente recalibragem para cima da despesa da União, na visão do economista, é que o gasto com o principal programa de transferência social (Bolsa Família, que mudou de nome para Auxílio Brasil e voltou agora à antiga denominação) foi de 0,4% do PIB na média de 2011 a 2020, tendo subido para 1,1% em 2022 e devendo se estabilizar em torno de 1,6% do PIB de 2023 em diante.

Finalmente, Borges faz projeções das trajetórias da dívida pública líquida e bruta com o novo arcabouço fiscal. Em todos os cenários, a dívida/PIB continua subindo até meados da década, mas menos do que o mercado projeta atualmente. 

Para construir essas projeções, Borges pressupõe que, em 2027, o governo vai reconhecer um “esqueleto” fiscal de aproximadamente 1,5% do PIB (R$ 215 bilhões), relativo a precatórios expedidos e não pagos entre 2022 e 2026 – o impacto é direto na dívida, sem passar pelo resultado primário. Outras premissas são uma Selic real de 4,5% ao ano no médio prazo, bem como um resultado primário conjunto dos governos estaduais e municipais nulo de 2023 em diante (entre 2017 e 2022, a média do resultado primário dos governos regionais foi de superávit de 0,4% do PIB, subindo para 0,6% do PIB quando se toma a média de 2002 a 2022).

Nos cenários com aumento de carga tributária, a dívida líquida, pós 2027, se estabiliza e começa a cair. Nos cenários sem aumento de carga, a dívida líquida prossegue em alta até 2031, mas menor do que a prevista hoje pelo mercado. No caso da dívida bruta, a trajetória é parecida com a da líquida, mas a partir de nível naturalmente mais alto. A questão das operações compromissadas, que entram na dívida bruta, mas não derivam de déficit fiscal, complicam um pouco a interpretação da trajetória da dívida bruta – ainda mais após a criação do depósito voluntário remunerado em 2021 –, razão pela qual Borges prefere a métrica da dívida líquida.

Uma questão mais geral, mas não menos pertinente, como aponta Manoel Pires, pesquisador associado do FGV IBRE, é o porquê da escolha pelo governo do arcabouço fiscal tal como apresentado pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e seus auxiliares.

Para refletir sobre essa questão, Pires nota de início que há um conjunto de objetivos sempre desejáveis por quase qualquer governo: gerar crescimento econômico, estabilizar o nível de emprego e a inflação, e melhorar a distribuição de renda.

No caso específico do terceiro mandato do presidente Lula, na interpretação de Pires, a busca do crescimento parece estar vinculada à reforma tributária e à agenda de investimentos públicos (ou motivados pelo/em associação com o setor público), embora esta última frente ainda não esteja muito clara.

Já às novas regras fiscais caberia o papel de viabilizar a estabilização macroeconômica, pela via da correção da trajetória da dívida pública e consequente redução da taxa de juros. O combate à desigualdade, finalmente, fica a cargo do aumento dos gastos públicos vinculados à assistência social, saúde e educação e à redução dos privilégios tributários, os chamados “jabutis”, que também ajudam a fechar a conta pelo lado da receita.

Como o governo não pretende cortar – e, em alguns casos, pretende ampliar – gastos sociais e investimentos, mas precisa aumentar o resultado primário (de acordo com as metas que ele próprio fixou), o caminho natural é a expansão das receitas. Mas a intenção não é ampliar a carga distorcendo ainda mais o sistema tributário, o que poria em risco o efeito econômico da planejada reforma que visa justamente deixá-lo mais racional e consistente com o aumento da eficiência e da produtividade. Assim, o aumento da arrecadação é atrelado à redução de distorções, com baixo custo marginal.

Pires observa que qualquer ajuste fiscal produz efeito contracionista sobre a atividade econômica no curto prazo, e tem impactos mais complexos sobre o crescimento no longo prazo.

Quando o ajuste é realizado preponderantemente pela redução dos gastos, há contração da demanda agregada, e a redução do investimento público pode diminuir o acúmulo de capital físico. Já cortes de gasto em saúde e educação tendem a subtrair do acúmulo de capital humano. 

Por outro lado, ajustes fiscais com base no aumento de impostos reduzem o lucro das empresas e a renda disponível das famílias, além de impulsionarem a inflação (pelo repasse da alta de tributos aos preços). Há ainda as distorções provocadas pelos impostos nas decisões de consumo, poupança e investimento, prejudiciais à eficiência.

Partindo do pressuposto evidente de que um ajuste fiscal deve ser realizado ao menor custo social e econômico possível, a literatura acadêmica debruçou-se sobre a questão das vantagens e desvantagens de atacar o problema pelo lado da despesa e da receita. Revisando essa literatura, Pires encontrou que a evidência empírica mostra que multiplicadores fiscais de receitas – isto é, o quanto determinado aumento de imposto subtrai da atividade econômica – possuem menor impacto negativo do que multiplicadores de despesa, em particular, investimentos. Nesse último caso, se mede o quanto determinada redução de despesa pública, com destaque para investimentos, acarreta de perda de produto na economia.

Pires ressalva, entretanto, que estudos sobre multiplicadores de receita são mais incertos que os de despesa, porque nos primeiros existe um “viés positivo de estimação” – isto é, o menor crescimento do PIB também afeta negativamente as receitas, o que torna difícil separar os dois efeitos e compromete o valor das estimativas. 

Trabalho de 2019 dos economistas Alesina, Favero e Giavazzi buscou corrigir esse efeito, e acabou encontrando impactos mais contracionistas em ajustes feitos com aumento de receita, comparados aos realizados pelo lado da despesa. Mas esse próprio estudo também tem seus problemas: os autores não contrastaram o ajuste pela despesa com o ajuste pela receita concentrado no corte de investimentos, que têm o multiplicador mais elevado; e há problemas metodológicos na classificação algo imprecisa do que significa ajuste pela receita ou pela despesa. Além disso, existem evidências que mostram que ajustes pela receita realizados por aumento de base tributária possuem efeitos menos contracionistas do que ajustes feitos com aumento de alíquotas. Esse parece ser exatamente o cuidado que o governo está tomando.

Dessa forma, Pires pondera que a literatura dá pistas, mas não resolve cientificamente a escolha do melhor caminho para um ajuste fiscal. O que está claro é que o atual governo, por motivos políticos e ideológicos bastante legítimos, pretende realizar um ajuste fiscal em grande parte pela receita – o que, como calculou Borges, tornará necessário um aumento de carga tributária de aproximadamente 1,5% ao longo do atual mandato presidencial. 

O bom senso, apoiado na pesquisa econômica, aponta que idealmente um ajuste fiscal deve cortar gastos ineficientes e aumentar receitas com baixo custo marginal. O governo optou por trabalhar principalmente essa segunda alternativa, como mostram os movimentos iniciais do ministro Haddad na agenda da redução de isenções e “jabutis” tributários em geral. É um caminho que exige bastante apuro técnico – tendo em vista inclusive o terreno comum com a reforma tributária – e habilidade e força política. Mas é uma escolha viável e que, se bem-sucedida, pode ajudar o Brasil a reencontrar a trajetória de crescimento sustentado.


O texto é resultado de reflexões apresentadas em reunião por pesquisadores do IBRE. Dada a pluralidade de visões expostas, o documento traduz minhas percepções sobre o tema. Dessa feita, pode não representar a opinião de parte, ou da maioria, dos que contribuíram para a confecção deste artigo.

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