Na Carta do IBRE de fevereiro deste ano, foi analisado o impacto na conjuntura econômica brasileira da piora dramática da situação financeira da Previdência entre 2014 e o presente momento. Foi atribuída à melhora do ambiente externo para os emergentes, em especial em 2017, a principal causa para que nossa economia não experimentasse um novo ciclo de depressão. A trégua internacional, com as habituais oscilações, vigorou de forma geral ao longo dos últimos dois anos. Mais precisamente, após um repique de estresse em meados de 2018, o ambiente favorável reinstalou-se, especialmente a partir do início de 2019.
José Júlio Senna, responsável pelo Centro de Estudos Monetários do FGV IBRE, considera que a melhora do cenário internacional para os emergentes é um dos subprodutos de mudanças estruturais de grande importância no mundo desenvolvido. Em primeiro lugar, há a queda da produtividade do trabalho nas principais economias avançadas. No caso dos Estados Unidos, o crescimento anual da produtividade saiu de um ritmo de 2,6% de 1951 a 1973 para 0,6% de 2011 para 2017. Na Alemanha, de 5,8% para 1% na comparação entre os mesmos períodos. Trajetórias semelhantes ocorreram com Japão, Reino Unido e França.
Como o aumento populacional também desacelerou sistematicamente nessas economias desde o pós-guerra, o crescimento econômico – dado pelo ritmo de expansão da produtividade e da população ocupada – naturalmente caiu. No caso norte-americano, o crescimento médio anual do PIB caiu de 5% na década de 60 para 2% no período de 2010 a 2017. No mundo desenvolvido como um todo, a queda foi de 4,5% para 2,2%. A desaceleração foi mais suave na renda per capita, mas também ocorreu de forma nítida.
A redução de marcha da produtividade é um fenômeno da oferta, mas também há fatores estruturais de desaceleração dos países avançados pelo lado da demanda. O avanço da tecnologia tem diminuído a fatia de postos de trabalho de média capacitação, com elevação dos extremos, tanto daqueles de baixa como dos de alta. Isso, por sua vez, aumenta a concentração de renda, o que estimula a poupança e diminui o consumo agregados. As novas áreas tecnológicas ligadas à informática e à internet também reduzem a intensidade de capital dos novos investimentos, moderando a demanda. A redução do avanço da produtividade, assim como a do ritmo de crescimento econômico, inibe investimentos, por conta dos menores lucros esperados. E o envelhecimento e a diminuição da rapidez do crescimento demográfico também contribuem para a limitação de investimentos, especialmente na infraestrutura. Finalmente, o aumento da expectativa de vida amplia a sobrevivência prevista como aposentado, o que é um estímulo a poupar.
Do ponto de vista macroeconômico, todos esses fatores de contenção do crescimento e da demanda nas economias avançadas resultam em um ambiente de maior liquidez. Nesse contexto, verifica-se inflação em queda no mundo rico: de uma média de 2,3% entre 1990 e 1999 para 1,5% de 2010 a 2018 nos Estados Unidos; de 1,1% para 0,6% no Japão no mesmo período; e de 2,3% em 2000-2007 para 1,3% em 2010-2018 na zona do euro. Os juros reais de curto prazo nos países desenvolvidos, por seu turno, também recuaram. Partiram de um pico de quase 7% em 1992 para o território negativo a partir de 2009, no qual ainda se encontram.
Com a grande recessão no mundo avançado que se seguiu à crise financeira de 2007-2009, os juros, que já vinham tombando, caíram para níveis extraordinariamente baixos e muitas vezes negativos (até nominalmente, em certos casos). Com o pior da retração tendo ficado para trás, foi iniciado há alguns anos o processo de reversão do maciço arsenal de afrouxamento monetário convencional e quantitativo de que lançaram mão os principais bancos centrais. Esse processo avançou mais nos Estados Unidos, muito menos na zona do euro e praticamente nada no Japão. De qualquer forma, os juros do mundo rico já deixaram para trás o seu ponto mais baixo. Como apontado ao longo do texto, porém, esse processo de “normalização” provavelmente não nos levará ao status quo de outrora, mas sim a um “novo mundo” de inflação e juros duradouramente mais baixos, para os mesmos níveis de desemprego – em suma, uma mudança fundamental na chamada “curva de Philips”.
Esse cenário sem dúvida é positivo para economias emergentes, que dependem de capitais externos e apetite de risco dos investidores internacionais. Porém, como nota Senna, juros e inflação baixos nos países avançados não determinam sozinhos a qualidade do ambiente externo para emergentes. Há vários fatores concorrentes, como preços de commodities e a força ou fraqueza do dólar (principalmente) e de outras moedas centrais – além de outros componentes que entram nos índices de condições financeiras, como valorização de mercados acionários, spreads de risco etc.
Com base nessa interação complexa de fatores, é possível construir uma análise conjuntural mais acurada do que veio se passando com o Brasil e outros emergentes em tempos recentes. Os anos de 2016 e 2017 foram muito bons, mas a partir de meados de 2018 houve um momento de estresse ligado à ansiedade em relação ao ritmo da normalização monetária nos Estados Unidos. O temor era de que fosse mais rápido e intenso do que até então estava precificado. Essa insegurança se dissipou por completo com o “cavalo de pau” na comunicação do Federal Reserve sobre o tema no início do ano. A partir deste momento, o BC americano passou a sinalizar ritmo até mais lento do que o previsto pelos mais otimistas. Essa postura do Fed, por sua vez, está ligada a oscilações circunstanciais da economia, mas também remete à mudança de fundo do “mundo novo” de juros e inflação reduzidos.
Por outro lado, em termos conjunturais, os policymakers e os mercados mundo afora trafegam novamente uma fase de medo de desaceleração global. Sintomas desse risco pipocam por todo lado, com destaque para a forte freada recente na zona do euro, a queda generalizada dos PMIs (Purchasing Managers’ Index) e da produção industrial, e indicadores chineses que alimentam a preocupação em relação a um “pouso forçado” na segunda maior economia do mundo. Reforçando essa narrativa não muito alentadora, há o fato de que muitos consideram que o bom desempenho recente dos Estados Unidos decorreu do forte impulso fiscal de Trump.
É por aqui, como advoga Senna, que se pode desenhar um cenário negativo, embora de chance reduzida, para economias emergentes como a do Brasil. Há de se notar que mesmo o ambiente de desaceleração global não descontrolada já traz um efeito colateral incômodo, na forma da queda do crescimento do comércio global. De uma média de 7,3% ao ano no período pré-crise de 2000 a 2007, houve um recuo da expansão do comércio internacional em volume para 3,4% entre 2015 e 2017. Na eventualidade de uma travada mais brusca do crescimento global, não só o comércio internacional pode mergulhar muito mais, em meio a intensos conflitos protecionistas, como o apetite por risco pode secar de um momento para o outro, levando a uma “fuga para o dólar” e a depreciações extremas de moedas de emergentes – especialmente aqueles com maiores fragilidades. É, enfim, um cenário menos provável, pelo que se pode enxergar hoje, mas que não deve ser descartado do rol de possibilidades.
Em termos da conjuntura de curtíssimo prazo, como observa Armando Castelar, coordenador de Economia Aplicada do FGV IBRE, há sinais positivos no front geopolítico e comercial. Ganha força na Grã-Bretanha a tese do adiamento do Brexit, um evento perturbador da economia europeia e global, e Estados Unidos e China dão sinais de que podem chegar a algum tipo de entendimento no seu enfrentamento comercial.
Castelar compartilha com Senna o diagnóstico sobre o “mundo novo” de baixa inflação e juros. Em termos conjunturais, Castelar acrescenta outro fator positivo para emergentes, que é a moderação dos preços de petróleo. Mas a questão à qual o pesquisador dá particular foco é a do papel do cenário externo e das reformas internas, especialmente a da Previdência, em garantir a estabilidade macroeconômica do Brasil e a volta do crescimento sustentado num ritmo satisfatório.
Para Castelar, uma reforma significativa da Previdência – isto é, que preserve um percentual robusto das economias fiscais da proposta de Bolsonaro – seria suficiente para estabilizar de forma mais estrutural a economia brasileira, a menos de uma deterioração dramática do quadro externo. Por outro lado, Castelar pondera que, no curto prazo, a não aprovação de uma reforma dura da Previdência poderia não se mostrar catastrófica, do ponto de vista da estabilidade, diante do prolongamento do cenário externo de alta liquidez e apetite por risco.
Essa combinação de possibilidades cria uma economia política complexa. Por um lado, no cenário básico de manutenção das condições favoráveis externas, o Brasil ganha tempo para realizar reformas fiscais (como a previdenciária) de alto custo político para o governo. Contudo, o que poderia ser um trunfo acaba se tornando um risco. Na medida em que haja a percepção que a conjuntura econômica atual perdurará por algum tempo, o arranjo sociopolítico pode perder o sentido de urgência nas reformas de impacto fiscal importantes. A opção passa a ser, apenas, a atenção em políticas centradas na geração de empregos e de melhoria da infraestrutura social. Esse cenário se traduziria, provavelmente, numa atitude do governo de resistir fracamente à diluição da atual proposta de reforma.
Por outro lado, tanto Senna quanto Castelar consideram que a eventual aprovação de uma reforma da Previdência contundente em termos fiscais poderia ser justamente a chave pela qual, por meio de um salto na confiança, o país poderia sair do marasmo econômico atual e acelerar o ritmo de uma das retomadas mais lentas da nossa história. No entanto, o perigo é que o ritmo insistentemente desapontador da atual recuperação, mesmo com um ambiente internacional favorável, faça com que os formuladores de políticas públicas fiquem desestimulados na defesa de medidas que visem ao equilíbrio fiscal estrutural de longo prazo.
O texto é resultado de reflexões apresentadas em reunião por pesquisadores do IBRE. Dada a pluralidade de visões expostas, o documento traduz minhas percepções sobre o tema. Dessa feita, pode não representar a opinião de parte, ou da maioria, dos que contribuíram para a confecção deste artigo.